segunda-feira, 6 de julho de 2009

Estou chocada!

Para não se desiludir, preferia por vezes manter à distância aqueles de quem gostava, ignorando a crueldade da atitude.

Quando Margarida, a filha, regressou de Inglaterra, onde, muito jovem, fora fazer o doutoramento em Matemática, Laureano fez tudo para que ela não o fosse visitar. Tinha medo que ela tivesse voltado muito esquerdista, e que se zangassem à primeira discussão. Fizera tudo, aliás, para que ela não seguisse Matemática, receando que não conseguisse. Margarida empenhou-se em mostrar que ele estava enganado, concluindo a licenciatura com média de 17.

Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a colecção ideal do filantropo solitário.

No entanto, Laureano tornou-se amigo de pessoas que admirava. Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Costa Gomes, que foi seu colega de faculdade. O general era visita regular da Quinta da Fonte da Cova, até quando foi Presidente da República (Laureano chegou a enviar-lhe uma carta criticando-o pelas cedências aos comunistas), e o mesmo acontecia com vários intelectuais e artistas, alguns bem pouco convencionais, como Luís Pacheco ou Eugénio de Andrade. Nestes, o austero e rígido Laureano apreciava a liberdade e a capacidade de surpreender. Mas mais tarde ou mais cedo a tolerância levava à colisão.

Eugénio passava grandes temporadas na quinta. Sentia-se em casa e dava largas às suas muitos próprias jovialidade e loucura. Mas quando a mãe de Laureano morreu, não mostrou grande consternação, explicando simplesmente que não gostava de funerais.

Uma vez, numa festa, Laureano apresentou-lhe uma personalidade de Ponte da Barca, um sujeito baixo e gordo que sorria de deferência para com o poeta. Eugénio apertou-lhe a mão - "Muito prazer!" - mas ao mesmo tempo disse para o lado, alto e bom som: "Isto é um homem ou é um cagalhão?"

Foi de mais. Laureano cortou com ele relações, que só viria a reatar, décadas depois, pouco antes da morte do amigo.

Paulo Moura, "Laureano Barros: O homem que fugiu com uma biblioteca", jornal Público, 5 de Julho de 2009.

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